terça-feira, 3 de março de 2015

Não abandone o ator - um ensaio sobre Dois dias, uma noite

Antes de mais nada, quero te perguntar uma coisa. Já reparou que a maioria dos dramas mais comentados (e às vezes premiados) incluem pelo menos uma das seguintes opções: cenas de gritaria, choro, abuso sexual, doença grave (mas que nunca deixa a pessoa muito feia) e morte? Parece que é impossível atingir a empatia do espectador sem o filme berrar “Olha como isso é triste!”. Parecem novelizações de programas de TV de tarde, em que o apresentador explora uma tragédia (ou torna uma bobagem em tragédia) durante duas horas.

"Sônia, você acha a sua existência realmente necessária no planeta?"
Até filmes pipocas apelam para o dramalhão. O Guardiões da Galáxia (considerado o filme divertido de 2014 pelas listas da internet) começa com uma mãe morrendo de câncer. A cena é legal e tudo mais, mas depois todos os personagens que aparecem no filme apresentam como principal ponto de empatia o fato de terem perdido sua família de uma forma ou de outra. E assim é em todos os filmes de super-herói e blockbuster.

Onde estão os pequenos desafios do dia a dia, como lidar com uma doença menos grave mas que pode marcar uma vida, a aventura de envelhecer, as pequenas torturas familiares, o desemprego? O maravilhoso da arte é dar peso às coisas banais. E é por isso que Dois dias, uma noite, dos irmãos Dardenne, é tão incrível. Por contar apenas uma história de uma mulher lutando por seu emprego e contra a depressão.
Pela cara da moça, definitivamente não é um filme sobre uma festa.
A não ser que seja as festas que eu dou em casa.
No filme, a operária Sandra (Marion Cottilard) precisa encontrar cada colega de trabalho e convencê-los a abrir mão de um bônus para ela continuar na empresa. E ela não faz grandes discursos, não é eloquente, apenas é uma mãe de família que precisa do seu salário; e suas palavras são quase sempre as mesmas durante o filme todo. Os seus colegas não estão em situação melhor. Um ou outro poderia passar sem o bônus, mas a maioria precisa do dinheiro tanto quanto ela. Esse é o maior conflito no filme.

E Sandra demonstra algo que muita gente perde de vista quando discute o papel da mulher no cinema. Uma personagem feminina forte não precisa ser declaradamente forte. Não precisa ser durona, ter caráter inabalável, força física ou características consideradas masculinas. Sandra está visivelmente fragilizada desde o início. Ela começa dormindo, se levanta com desânimo e cuida das tarefas de forma quase alheia. Não há energia nela. E quando recebe a notícia da demissão, ela desaba.

É preciso de muito apoio por parte do marido e de uma colega para convencê-la a enfrentar a situação. E aí entra a maestria da atuação da Marion Cottilard, ela realmente passa a sensação de como cada passo vencido exige esforço de Sandra. Com uma cena simples - ela falando com uma pessoa do trabalho pelo telefone - você nota a personagem ficando sem ar, as palavras saindo entrecortadas ao tentar explicar a situação. A cada instante parece que ela vai perder o controle e interromper a ligação.

Isso torna as cenas tão angustiantes que quando a protagonista consegue fazer qualquer coisa (bater na porta, erguer a cabeça, falar, levantar da cama e - nossa! que cena! - aguentar ouvir uma música diabolicamente triste e linda no carro), dá vontade de gritar e aplaudir. Ao mesmo tempo que, ao ver a personagem se enchendo de calmantes, você fica preocupado e deseja que ela desista e se poupe. O que dá a tudo um tom incrivelmente heroico e comovente.

Mas é preciso entrar mais no filme para enxergar como ela consegue uma história com grande habilidade. É hora de SPOILER. Por isso é melhor dar meia-volta e ver o filme se não viu.